█ A Falácia do Livre Arbítrio

Esta afirmação deixará muitos cristãos chocados, já que a figura do livre arbítrio é básica na estrutura da sua religião, pois, conforme muito bem analisou a questão o filósofo Friedrich Nietzsche, é ela que dá suporte à noção de pecado, peça chave do cristianismo, a induzir os adeptos desta religião a prática das virtudes e a rejeição dos vícios, ambos definidos pela própria religião.


Pretendo provar esta minha afirmação, que dá título ao presente texto, embora saiba que a discussão entre a existência do livre arbítrio ou do determinismo, na vida dos seres humanos, tem ocupado o tempo e a mente de inúmeros filósofos, cientistas, pensadores religiosos e de pessoas comuns, que adoram discutir e ganhar as suas discussões mesmo não tendo razão.


 Designa-se por falácia um raciocínio errado com aparência de verdadeiro. Na lógica e na retórica, uma falácia é um argumento logicamente incoerente, sem fundamento, inválido ou falho na tentativa de provar eficazmente o que alega.


 Para chegar até onde desejo, eu Iniciarei por aquilo que tem sido dito pelos filósofos:


. Spinoza: O filósofo Spinoza afirmou em seu livro ‘Ética’ que “Não há na mente vontade livre ou absoluta, mas a mente é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que é determinada, por sua vez, por outra causa e essa por outra, e assim sucessivamente até o infinito. Os homens se consideram livres porque estão cônscios das suas volições e desejos, mas são ignorantes das causas pelas quais são conduzidos a querer e desejar”.


. Voltaire: Voltaire em ‘O Filosofo Ignorante’ afirma: “Nada é sem causa. Um efeito sem causa é apenas uma palavra absurda. Todas as vezes que quero, isto só pode ocorrer em virtude do meu juízo bom ou mau; este juízo é necessário, portanto minha vontade também o é. Com efeito, seria muito singular que toda a Natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um animalzinho de cinco pés de altura que, menosprezando tais leis, pudesse agir sempre como lhe agradasse, ao sabor do seu capricho. Agiria ao acaso e sabe-se que o acaso nada é. Inventamos esta palavra para exprimir o efeito conhecido de toda causa desconhecida.”. “Não há intermediário entre a necessidade e o acaso, e sabeis que não há acaso; portanto, tudo o que ocorre é necessário”.


. Immanuel Kant: Kant em ‘Critica da Razão Prática’ afirma que a religião não pode ser baseada na ciência nem na teologia, mas sim na moral. “Temos de encontrar uma ética universal e necessária; princípios ‘a priori’ de moral, tão absolutos e certos quanto a matemática. Temos de mostrar que a razão pura pode ser prática; isto é, pode, por si só, determinar a vontade, independentemente de qualquer coisa empírica, que o senso moral é inato, e não derivado de experiência. O imperativo moral de que precisamos, como base da religião, deve ser um imperativo absoluto, categórico.”


“A mais impressionante realidade em toda a nossa experiência é, precisamente, o nosso senso moral, nosso sentimento inevitável, diante da tentação, de que isto ou aquilo está errado. Podemos ceder; mas, apesar disto, o sentimento lá está.”


“E uma boa ação é boa não porque traz bons resultados, ou porque é sabia, mas porque é feita em obediência a esse senso íntimo do dever, essa lei moral que não vem de nossa experiência pessoal, mas legisla imperiosamente e ‘a priori’ para todo o nosso comportamento, passado, presente e futuro.”


. Hegel: Hegel desenvolveu uma velha ideia, prenunciada por Empédocles e corporificada por Aristóteles, que é a do movimento dialético. “O movimento de evolução é um continuo desenvolvimento de oposições, e a fusão e reconciliação destas. Não só os pensamentos se desenvolvem e evoluem segundo esse movimento dialético, mas também as coisas. Tese, antítese e síntese constituem a fórmula e o segredo de todo o desenvolvimento e de toda a realidade”.


. Schopenhauer: Para ele, “Cada um acredita de si mesmo ‘a priori’ que é perfeitamente livre, mesmo em suas ações individuais, e pensa que a cada momento pode começar outra maneira de viver. ‘A posteriori’, entretanto, descobre para seu espanto, através da experiência, que não é livre, mas sujeito a necessidade (grifo nosso), que apesar de todas as suas resoluções e reflexões ele não muda sua conduta e que, do inicio ao fim da vida, ele deve conduzir o mesmo caráter, o qual ele mesmo condenou”.


. Hobbes afirma que “O livre-arbítrio é um poder definido pela vontade e, portanto, não é livre nem não livre. Seria, assim, um erro atribuir liberdade à vontade”.


. Locke, em seu ‘Ensaio acerca do Entendimento Humano’, afirma que “A questão de se a vontade humana é livre ou não, é imprópria. A liberdade, que é apenas um poder, pertence apenas aos agentes e não pode ser um atributo ou modificação da vontade, a qual também é apenas um poder.”


. Isaiah Berlin diz que “Para uma escolha ser livre, o agente deve ter sido capaz de agir de outra maneira.” Este princípio, mais tarde denominado de principio das Possibilidades Alternativas, é considerado por seus defensores como uma condição necessária para a liberdade.


. Nietzsche, em seu “Porque Sou um Destino” afirma que “A religião inventou a noção do pecado juntamente com o seu instrumento de tortura, o livre-arbítrio, para confundir os instintos, para fazer da desconfiança frente aos instintos uma segunda natureza”!


. Daniel Dennet, um compatibilísta, apresenta o seu argumento para uma ‘Teoria Compatibilista do Livre-Arbítrio’ da seguinte maneira: “Se os indivíduos não considerarem a existência de Deus, através do ‘Caos’ e da pseudo-aleatoriedade ou aleatoriedade quântica, o futuro não está definido para os seres finitos. Visto que os indivíduos teriam a capacidade de agir diferentemente do que se espera, o livre-arbítrio existiria”. Os Incompatibilistas alegam que a hereditariedade e o ambiente configurariam uma ‘coerção irresistível’, e todas as nossas ações seriam controladas, portanto, por forças exteriores a nós mesmos.


             Naquilo que se refere às religiões, constata-se que as culturas mais antigas, orientais, sob a influência do budismo e do hinduísmo, optaram por uma visão determinística da existência humana, que beneficiaria a evolução espiritual.


             As culturas ocidentais, sob a influência do judaísmo/ catolicismo/protestantismo, optaram por uma visão de livre-arbítrio, que beneficiaria a satisfação dos desejos do ego.   Estas duas visões, opostas, parecem justificar o estagio de desenvolvimento econômico e científico mais elevado no Ocidente que no Oriente.


             Relativamente ao pensamento científico, a Ciência também tem efetuado inúmeras tentativas de responder a questão do livre-arbítrio através de pesquisas científicas.


 O pensamento científico, de uma maneira geral, vê o universo de maneira determinística e alguns pensadores científicos creem que para predizer o futuro é preciso, simplesmente, dispor de informações sobre o passado e o presente. A crença atual, entretanto, consiste em uma mescla de teorias determinísticas e probabilísticas.


 Albert Einstein, determinista, acreditava na Teoria da Variável Oculta, isto é, de que no âmago das probabilidades quânticas existiriam variáveis determinadas.


Em Gomes G. (2001) ‘Os dois conceitos freudianos de ‘Trieb’. Psicologia; Teoria e Pesquisa, encontramos a seguinte afirmação:


  ”Podemos afirmar que, se Freud não fosse um forte adepto do determinismo psíquico, ele jamais poderia ter feito o que fez: conduzir os sintomas neuróticos e toda uma classe de fenômenos psíquicos extremamente banais a uma categoria de fundamental importância em sua pesquisa. A opção determinista também pode ser vista como determinante para sua forte adesão ao conceito de pulsão. É por achar que um fenômeno psíquico não pode nunca resultar puramente de uma razão abstrata, ou de uma pura espontaneidade criativa, que Freud foi buscar no conceito de pulsão uma fonte sempre presente da ocorrência do psíquico”.


 Do mesmo modo que os físicos, os biólogos também tratam da questão do livre-arbítrio, através da Natureza e da Nutrição.  Questionam, assim, a importância da Genética e da Biologia, na influencia do comportamento humano, quando comparadas com a Cultura e o Ambiente.


 Existem várias desordens relativas ao funcionamento do cérebro e que, na Medicina Neurológica, alguns chamam de ‘desordens do livre-arbítrio’, como a neurose obsessivo-compulsiva, em que o indivíduo sente uma necessidade incontrolável de fazer algo contra a sua própria vontade. Outras síndromes, como a de ‘Tourette’ e a da ‘Mão Estranha’, levam o individuo a fazer movimentos involuntários sem que tenha a intenção de fazê-los.


             Na Ciência Cognitiva, no Emergentismo e na Psicologia Evolucionária, o livre-arbítrio seria a geração de quase infinitos possíveis comportamentos, através da interação de conjunto finito e determinado de regras e parâmetros. As experiências de livre-arbítrio surgiriam, assim, da interação de regras finitas e de parâmetros determinados, que gerariam comportamentos infinitos e imprevisíveis.


 Em que pesem os avanços obtidos pela Ciência, de um modo geral, nós ainda estamos bem longe de poder encontrar explicações para os fenômenos metafísicos que, há milênios, ocupam constantemente o pensamento daqueles que se interessam pelo assunto. As teorias religiosas, filosóficas e cientificas têm-se sucedido, umas as outras, em um perpétuo embate ideológico pela primazia da posse sobre a verdade metafísica. A maior parte delas tenta esconder seu total desconhecimento sobre como as coisas ocorrem naquela realidade, através de textos muitas vezes rebuscados, ininteligíveis ou herméticos.


Pelo que podemos deduzir parece que tem sido constantemente negado ao ser humano, desde o inicio dos tempos até os dias atuais, o conhecimento irrefutável de como as coisas se passariam no território em que penetramos após a morte. As únicas instituições a se aventurarem a incursionar a respeito, neste campo, são as religiosas, que, todavia, o fazem não através de fatos científicos, mas, sim, da chamada ‘revelação’, que necessita da fé para se transformar em verdade aceita.


 Considerando que a espécie humana é portadora de características muito especiais, que lhe conferem um lugar de destaque entre as demais espécies, através do seu desenvolvimento intelectual e do acumulo de conhecimento proporcionado pelo progresso das ciências, chegaremos, com certeza, a descobrir como as coisas ocorrem do outro lado; mesmo porque, em conformidade com o nosso ponto de vista, grande parte dos fenômenos metafísicos de hoje, serão, apenas, simples fenômenos físicos amanhã.


Pelo fato de desconhecermos, no presente, as verdadeiras explicações para estes fatos, os colocamos para além da Física. Entretanto, todos eles não passariam de simples fenômenos pertencentes ao campo das Ciências, conforme constataremos, com certeza, futuramente.


 Mas, voltando ao tema do presente texto, felizmente, na era da tecnologia da informática, da inteligência artificial, em que imensos volumes de informação são diariamente armazenados e processados e quando sabemos que a posse das informações significa poder, podemos analisar com mais acuidade o fenômeno psicológico envolvendo todas as decisões humanas e provar que o livre arbítrio não passa, simplesmente, de uma falácia que tem sido proclamada ao longo dos dois últimos milênios com objetivos determinados.


Ao longo da vida humana da mesma forma como ocorre com os computadores, as mentes dos seres humanos assimilam, absorvem e armazenam imensas quantidades de informações. Tais informações são utilizadas para que os indivíduos decidam suas ações da melhor forma possível, em seus benefícios próprios.


 Ninguém, fazendo uso das informações de que dispõe, decide de forma errada, intencionalmente, em seu prejuízo, a não ser quando sofre de alguma patologia psíquica aguda ou crônica ou está submetido a uma forte emoção que o coloca fora de seu estado normal. Estamos falando de seres humanos normais que, por definição, são racionais e agem racionalmente.


Ao se defrontar com a necessidade de tomar alguma decisão, todo ser humano faz uso das informações prévias de que dispõe. Analisa estas informações e, com base nelas, toma, inconscientemente, a decisão mais acertada em seu próprio benefício. É assim que nós agimos, em todos os momentos de nossas terrenas existências. Mesmo ao fazer o mal, quem o faz está tomando a decisão correta, segundo os parâmetros da sua função objetivo. Da mesma forma procede ao fazer o bem. As funções objetivo de cada indivíduo, a cada momento, são, sem dúvida, diferentes daquelas dos demais.


Quero deixar claro que os indivíduos normais e racionais não poderiam tomar decisões diferentes daquelas que tomaram, pois estas são as que maximizam as suas funções objetivo, considerando todas as restrições, limitações, informações, conhecimentos, experiências e vivências que acumulou ao longo da vida.


Portanto, não temos esta escolha que a corrente favorável ao chamado livre arbítrio defende. Esta escolha só existiria se não possuíssemos nenhuma informação previa e decidíssemos com base, exclusivamente, no nosso desejo do momento.


 Só temos uma alternativa, que é a melhor decisão e é a que adotamos na hora em que precisamos. Todas as demais decisões, que poderíamos eventualmente tomar, seriam, para nós, piores do que a adotada, pois, caso contrário, não a teríamos escolhido. Só a escolhemos por que a nossa experiência prévia e as informações de que dispúnhamos nos fizeram com que a adotássemos.


Livre arbítrio significaria poder escolher e, neste caso, não temos escolhas; pois seremos, inexorável e inconscientemente, conduzidos a adotar a decisão que nos afigura como a melhor. Jamais adotaremos alguma outra decisão que nos pareça pior do que a que adotamos. Só farão isto aqueles que perderam o contato com a realidade e, portanto, sofrem de alguma patologia psíquica ou estão sob uma forte emoção e, portanto, fora de si.


 Nossas decisões, desta forma, são sempre inconscientemente determinadas por nossas informações e experiências prévias. As decisões que tomamos, ao longo de nossas vidas, podem até ser reconhecidas, mais tarde, por nós mesmos, como tendo sido decisões erradas; entretanto, quando foram tomadas, eram as decisões corretas, com base nas informações de que dispúnhamos naquela ocasião.


Isto sempre ocorreu, ainda ocorre e irá sempre ocorrer na vida de todos nós, seres humanos.


 Portanto, não há que se falar em livre arbítrio, construção esta, conforme bem intuiu Friedrich Nietzsche, que tinha uma razão bem definida ao ser adotada na Idade Média pela Igreja de Roma: colocar como pecado do indivíduo (por ter sido responsabilidade do próprio ser humano que poderia ter tomado outra decisão) algo que era da responsabilidade do seu Criador; isto é, as experiências de vida das criaturas, bem como o modo como as informações que elas geraram são armazenadas em suas mentes e usadas para a tomada de decisões foram todas obras daquele que as criou.


 Nada disto seria, pois, a meu ver, obra dos seres humanos; já que, segundo o próprio cristianismo, eles já encarnaram com missões previamente determinadas por aquele que as criou (nasceram em determinado local, em determinada família, com determinado caráter, com determinada inteligência, com determinada constituição e aparência física), tratando-se, assim, de criaturas que de nenhuma forma interferiram em suas criações.


O mesmo raciocínio é válido para aqueles que não acreditam na existência de um Criador. Para estes, também, o ser humano jamais teria livre arbítrio para escolher entre várias decisões, pois sempre tomaria inconscientemente aquela que lhe parecesse a melhor para si mesmo, com base em sua experiência prévia e nas informações geradas por esta; muito embora, para todos nós, seja bem mais agradável imaginarmos que temos total liberdade de decidir sobre a nossa própria sorte.


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